Abelardo Sampaio Lopes Neto
Gabriela Souto de Assis
RESUMO
Este trabalho consiste na análise dos fundamentos teóricos que nortearam a construção do Código de Menores de Melo de Matos e mais especificamente do Código de Menores de 1979 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, comparando as conjunturas e pensamentos vigentes à época de cada um deles e o objetivo a que cada qual se propunha. Posteriormente tal análise é trazida à letra da lei dos diplomas legais, demonstrando as características expostas na análise agora observando as disposições sobre as entidades de assistência aos menores constantes de cada um deles.
1. Introdução
Sabe-se que, ao longo dos anos, o tratamento dispensado às crianças e adolescentes vem sendo alterado gradativamente. Entre as idas e vindas dos diplomas legais, foram-se desenvolvendo conceitos, muitas vezes amplos e abstratos, para justificar a condição de fragilidade do menor e a necessidade de tratamento diferenciado.
Entre as discussões travadas, os maiores expoentes foram, sem dúvida, as noções de culpabilidade e imputabilidade, grandes protagonistas do Direito Penal. Tais conceitos, adotados como ferramentas auxiliares da aplicação do direito para os menores, fortaleceram ainda mais a idéia de que o Direito Penal é matéria indispensável, ainda que para tratar de pessoas imaturas. Tratava-se de uma expansão do Direito Penal, cujas regras serviriam para solucionar também os problemas do campo social.
Ao longo dos anos, foram diversas as correntes e teorias que determinaram a situação das crianças e adolescentes, sedimentadas com destaque no Brasil, desde os Códigos de Menores do século passado até o recente Estatuto da Criança e do Adolescente, passando ainda pelas legislações internacionais.
Este projeto visa, sem maiores pretensões, analisar as teorias desenvolvidas ao longo do século XX, e estabelecer uma comparação entre as regras dos ultrapassados Códigos de Menores e os preceitos estabelecidos no recente, mas não menos problemático, Estatuto da Criança e do Adolescente.
2. Inimputabilidade e Culpabilidade
Não é o Estatuto da Criança e do Adolescente que inaugura no Brasil o tratamento diferenciado. O tratamento distinto sempre existiu, entretanto, os fundamentos que balizavam essa postura individualizada é que sempre variaram no tempo, passando ora pelos costumes, ora por conceitos teóricos.
Ao longo dos anos, e por todo o mundo, diversas foram as motivações que justificaram o tratamento especial concedido aos menores, tendo passado, inclusive, pelo Código de Manu, antigo documento, cujo fundamento era a perpetuação da espécie, priorizando a fragilidade das pessoas. Os romanos, por exemplo, criaram critérios mais científicos, como o da puberdade; o do discernimento, em que a malícia supriria o critério da idade, quando o menor cometesse o delito com interesse de prejudicar um terceiro; culminando no Dolus Mallus, critério que aliava a idade do criminoso com a capacidade ou vontade de causar mal. Os germanos desenvolveram um critério atípico, mas de certa forma interessante: a capacidade para segurar armas, remontando à época dos guerreiros e partiam em batalhas pela conquista de terras; quem não pudesse lutar, deveria ser protegido. Por fim, o método da maçã de Lubeca, que procurava avaliar a malícia de uma criança, que deveria optar entre uma maçã e uma moeda de ouro.
A imputabilidade, um fundamento do campo-jurídico penal, foi um conceito muito importante para a Escola Clássica, e é o que hoje justifica no Brasil a adoção de um corpo legislativo diferenciado, um Estatuto para a proteção das crianças e dos adolescentes. Os menores são inimputáveis, embora existam autores, como o renomado Paulo Queiroz, que acreditam na inexistência deste conceito no campo do fenômeno. A inimputabilidade seria então, uma mera decisão política, voltada para preservar uma faixa de pessoas.
Segundo o entendimento do sábio doutrinador Régis Prado:
“Imputabilidade é a plena capacidade (estado ou condição) de culpabilidade, entendida como capacidade de entender e de querer, e, por conseguinte, de responsabilidade criminal (o imputável responde pelos seus atos). Costuma ser definida como o conjunto das condições de maturidade e sanidade mental que permitem ao agente conhecer o caráter ilícito do seu ato e determinar-se de acordo com esse entendimento”.
A inimputabilidade é a incapacidade de culpa, de entender e de se determinar de acordo com a norma. O ser inimputável pode até conhecer a norma, a sua ilicitude, mas não é capaz de usar o seu entendimento como contra-motivação. Mas existem dois critérios acerca da inimputabilidade sedimentados no Código Penal Brasileiro: o critério biopsicológico, adotado nas causas que envolvem criminosos com transtornos mentais; e o critério biológico, aplicado em razão da idade do infrator. Esse é o critério normalmente utilizado quando se fala da inimputabilidade do menor. Entretanto, há também casos de menores infratores portadores de síndromes mentais. É de bastante conveniência transcrever trecho do Código Penal Brasileiro, que traz disposições acerca da imputabilidade penal e os critérios supracitados:
“DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.
Código Penal
TÍTULO III
DA IMPUTABILIDADE PENAL
Inimputáveis
Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Redução de pena
Parágrafo único – A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Menores de dezoito anos
Art. 27 – Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.”
Entretanto, como salienta o professor Sebastian Mello, em notas de aula, para se falar de inimputabilidade, é necessário conceituar e entender também a noção de culpabilidade. A culpabilidade é um juízo de imputação, pela qual se atribui a responsabilidade penal a alguém por um determinado fato ilícito. De acordo com a Teoria Finalista da Ação, o sujeito é culpável porque cometeu um crime quando poderia não ter cometido. Culpabilidade é o liame subjetivo entre o autor e o resultado; é o pressuposto da imposição da pena. Percebe-se então a proximidade entre ambos os conceitos, que, de certa forma, criam uma relação de interdependência para possibilitar a aplicação da pena.
A partir de uma rápida análise acerca dos fundamentos que justificaram, ao longo dos anos, o tratamento diferenciado para os menores, faremos um breve estudo comparativo entre os antigos Códigos de Menores, pautados em correntes ultrapassadas, mas que foram de extrema importância por alimentar a luta pela proteção dos direitos dos menores, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, baseado em teorias protecionistas com forte cunho garantista.
3. Código De Menores e o Estatuto da Criança e do Adolescente: a Evolução do Tratamento Penal Dispensado aos Menores no Brasil, Durante o Século XX, em uma Análise Crítica e Comparativa.
Os Códigos de Menores do século passado foram verdadeiros marcos históricos no tocante à proteção especial dispensada aos menores. Marcados por um cunho tutelar, que visava à proteção do menor infrator, os Códigos de Menores de 1927 (Código de Melo Matos) e 1979 marcaram a preocupação cada vez maior pela especialização do Direito, culminando na proteção dos menores através de uma lei especial. Notadamente, o Código de Menores de 1979 dispunha acerca da tutela e vigilância de menores em situação irregular. A lei não demonstra outro interesse a não ser o de manter os menores, infratores em potencial, sob o cuidado do estado. Entretanto, a lei não se estendia para as crianças e adolescentes em geral, pois a preocupação maior era com os menores que, por seu modo ou condição de vida, teriam maior tendência a seguir pelo mundo do crime.
O interesse camuflado dos Códigos de Menores era a proteção da sociedade, excluindo os menores infratores do meio social. Na verdade, havia uma tentativa de higienização das ruas, pois, via de regra, aos menores infratores eram deferidas medidas de internação como resposta à infração cometida. Para isso, foram criadas instituições como a FUNABEM e as FEBENS estaduais. Analisando-se a fundo, a medida de internação nada difere da pena, nem à época dos Códigos de Menores, nem com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente. Pode-se dizer ainda que, com as características da etapa tutelar, pretensiosamente mais benéfica para o menor, o que se via era a aplicação de medidas e penas com um caráter retributivo disfarçado. Embora os Códigos se propusessem a proteger o menor, o verdadeiro objetivo era garantir a paz e segurança social, punindo o menor por suas infrações, com o objetivo escancarado de prestar esclarecimentos à sociedade, sedenta por respostas do governo acerca da criminalidade infantil. Mas como sabiamente argumenta o Doutor Paulo Queiroz, em sua obra “Funções do Direito Penal”:
“Também a idéia de retribuição pressupõe a necessidade mesma da pena, pois fundamenta algo que já é dado, previamente, com o existente e válido. Não responde à indagação sobre quais os pressupostos que devem orientar a punição de uma certa conduta, nada diz sobre qual deva ser seu conteúdo (…) Numa palavra, a realização da justiça pode dar-se por um sem-número de possibilidades (reparatória, conciliatória, terapêutica, etc.), sendo a punição apenas uma dessas possibilidades. Nada diz, enfim, sobre necessidade, oportunidade, conveniência, adequação, etc.”
Esta etapa, marcada pelos Códigos de Menores, demonstra a adoção de um direito tutelar, o que deveria trazer maior proteção para as crianças e adolescentes, porém é uma etapa marcada por políticas de vigilância e proteção, que não concretizou quaisquer espécies de garantias voltadas para o menor. Influenciada pela Escola Correcionalista, esta etapa visou apenas corrigir as atitudes dos menores, sem, entretanto, sedimentar princípios e valores de real importância, que diferenciasse os menores dos adultos no campo do processo penal e da aplicação da pena.
Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, ocorreu o fenômeno da normatização de princípios, que já existiam na Constituição Federal. Com o ECA em vigor, esses princípios ganharam aplicabilidade no campo prático. Inaugurou-se uma etapa garantista, em que o direito, além de proteger as crianças e adolescentes, os trouxe como sujeitos de direito.
Diferente da etapa tutelar, a fase garantista preocupa-se mais com o destino e a situação do menor no meio social, tendo em vista que há uma tendência grande em estigmatizar o menor sujeito às medidas sócio-educativas. Quando aplicadas as medidas protetivas, a tendência a essa segregação diminui consideravelmente. A pena não deve aparecer como medida retributiva, mas deve cumprir sua função preventiva e ressocializante, na medida em que tem a capacidade de ajudar o menor a manter-se em uma faixa de conduta lícita e aceitável. Como bem salienta o Professor Gamil Föppel El Hireche, em sua obra “A Função da Pena na Visão de Claus Roxin”, citando Jorge de Figueiredo Dias:
“É sabido como o problema dos fins (…) da pena criminal é tão velho quanto a sua própria história de direito penal (…). A razão de um tal interesse e da sua persistência ao longo do tempo está em que, à sombra do problema dos fins das penas, é no fundo toda a teoria do direito penal que se discute e, com particular incidência, as questões fulcrais da legitimação, fundamentação, justificação e função da intervenção penal estatal. Por isso se pode dizer, sem exagero, que a questão dos fins da pena constitui, no fundo, a questão do destino do direito penal…”
O ECA trata, a despeito dos Códigos de Menores, de todos os menores, infratores ou não, que estejam em situação de risco. É mais abrangente do que as antigas legislações, protegendo uma faixa maior de pessoas. É bem verdade que o Estatuto pretendeu ser muito mais do que realmente significa, entretanto, seu advento serviu como marco histórico da vitória pela luta pelos direitos e garantias dos menores. Enquanto que os antigos Códigos de Menores permitiam lacunas que equiparavam, em algumas situações, os menores aos adultos, como também, traziam mais proteções para os adolescentes do que para as crianças, o Estatuto da Criança e do Adolescente diferencia os menores dos adultos, além de estabelecer diferenças nos tratamentos dispensados para as crianças e adolescentes. Um grande exemplo desta preocupação em tratar desigualmente os desiguais, é a diferenciação de atribuições entre os Conselhos Tutelares e as Varas da Infância e Juventude.
O Estatuto não aparece como coadjuvante frente às regras consagradas pelo Código Penal ou Código de Processo. Pelo contrário, sustenta a sua existência simultânea, adotando princípios e noções de ambos os Códigos, adaptando-os à realidade do menor. A exemplo disso temos os princípios da ampla defesa, do contraditório, também previstos na Constituição Federal. A diferença é que, diante do ECA, o autor não é denominado réu, mas menor infrator, podendo defender-se com os mesmos mecanismos de um adulto, mas sendo tratado de maneira especializada. O princípio da proporcionalidade também deve ser aplicado em favor do menor, tendo em vista que as medidas sócio-educativas nunca devem ser mais severas que as penas sofridas pelos adultos, quando do cometimento de iguais infrações.
Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente seja uma conquista legislativa das mais importantes nos últimos anos, é necessário tecer pequenas, mas contundentes críticas a esta legislação.
O documento, embora trace direitos e garantias para os menores infratores, diferencia, dentro da própria categoria “menor”, dois grupos: as crianças, de 0 a 12 anos incompletos; e os adolescentes, de 12 a 18 anos incompletos. Como destaca a Professora Maria Auxiliadora Minahim, o Estatuto deixa-se tomar pelos afetos, pelo sentimento de proteção e piedade que se tem pelas crianças menores, e acaba por conferir aos adolescentes uma feição mais madura, como se merecessem tratamento diferenciado por terem um pouco mais de discernimento, à revelia da inimputabilidade constitucional plena para o menor de dezoito anos. Essa é uma falha do documento, que deve sofrer duras críticas, porque tal diferenciação apenas abre oportunidades para que os adolescentes sejam tratados de forma mais severa, o que inclusive, culmina na luta descabida pela redução da maioridade penal. Além disso, o Estatuto traz as linhas práticas para a efetivação dos direitos e garantias constitucionais, porém a execução desses preceitos demonstra-se problemática, tendo em vista que, em um país onde as desigualdades sociais imperam, e em que a inércia governamental anda freqüentemente aliada à corrupção, é de certa forma surreal a executividade de todos os direitos e garantias previsto no ECA. Faltam recursos, planejamentos, pessoas capacitadas para lidar com os menores, líderes realmente interessadas neste plano, que possam não apenas ajudar a por em prática um aparato voltado para atender crianças e adolescentes, mas fazer valer a pena uma batalha travada por todo o século XX e trazer credibilidade para a Justiça brasileira.
4. A Disciplina Aplicada às Entidades de Assistência ao Menor
Depois de realizar uma análise dos fundamentos gerais que nortearam a formulação do Código de Menores de 1979 e do Estatuto da Criança e do Adolescente demonstrando os enfoques diferenciados que cada um destes diplomas possui e seus respectivos objetivos, cabe agora visualizar tais diferenças no corpo de tais legislações, no tratamento que os mesmos disponibilizavam a questões semelhantes, para com isso dar credibilidade às conclusões apresentadas até este momento.
Para tanto, escolhemos discorrer sobre a disciplina dada às instituições responsáveis pelo acolhimento de crianças e adolescentes, sejam elas administradas pelo poder público ou pela iniciativa privada.
4.1 No Código de Menores de 1979
O Código de Menores de 1979 dedica quatro artigos à questão das entidades de assistência e proteção ao menor, sendo um para aquelas administradas pelo poder público e outros três para as particulares.
“Art 9º. As entidades de assistência e proteção ao menor serão criadas pelo Poder Público, segundo as diretrizes da Política Nacional do Bem-Estar do Menor, e terão centros especializados destinados à recepção, triagem e observação, e à permanência de menores.
§1º O estudo do caso do menor no centro de recepção, triagem e observação considerará os aspectos social, médico e psicopedagógico, e será feito no prazo médio de três meses.
§2º A escolarização e a profissionalização do menor serão obrigatórias nos centros de permanência.
§3º Das anotações sobre os menores assistidos ou acolhidos constarão a data e circunstâncias do atendimento, nome do menor e de seus pais ou responsável, sexo, idade, ficha de controle de sua formação, relação de seus pertences e demais dados que possibilitem sua identificação e a individualização de seu tratamento.
Art 10. As entidades particulares de assistência e proteção ao menor somente poderão funcionar depois de registradas no órgão estadual responsável pelos programas de bem-estar do menor, o qual comunicará o registro à autoridade judiciária local e à Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor.
Parágrafo único. Será negado registro à entidade que não se adequar às diretrizes da Política Nacional do Bem-Estar do Menor e ao disposto nesta Lei.
Art 11. Toda entidade manterá arquivo das anotações a que se refere o §3 do art. 9º desta Lei, e promoverá a escolarização e a profissionalização de seus assistidos. Preferentemente em estabelecimentos abertos.
Art 12. É vedado à entidade particular entregar menor sub–judice a qualquer pessoa, ou transferi-lo a outra entidade, sem autorização judicial.”
Fica claro nas disposições supra o caráter tutelar do Código de Menores de 1979, nomeadamente quando trata o menor como sub-judice, objeto de medidas judiciais, ainda mais explicitamente quando diz que tais indivíduos serão recepcionados, triados e observados, procedimento semelhante àquele que se destina a separação de mercadorias, itens a ser armazenados. Este diploma termina por ser um mero instrumento de controle social daqueles menores em situação irregular, visto que, somente estes estavam sujeitos às disposições do código.
Outro ponto que merece destaque nesta parte da codificação é a visão do menor infrator como uma patologia social, quando o artigo 9º §3º determina que as informações obtidas sobre o menor sejam utilizadas para individualizar o seu tratamento, estes eram “anormais”, não estavam de acordo com os padrões estabelecidos pela sociedade e por isso deveriam ser “curados”, mediante a internação nestes estabelecimentos, um verdadeiro confinamento, onde se privava os menores da convivência com aquilo que seria a causa para o seu desvio comportamental: o mundo da ruas, a pobreza, a miséria, o ócio visto como algo prejudicial, além da promiscuidade.
Merece comentário a referência que faz o código à Política Nacional de Bem-Estar do Menor, como de observância obrigatória no “tratamento” imposto aos menores em situação irregular. Tal política nasceu no ano de 1964 através da Lei n. 4.513 de 1º de Dezembro, em plena Ditadura Militar e, como não poderia de outro modo ser, baseia-se na disciplina como meio de “consertar” este problema social em que consistiam os menores infratores, visava proteger estes indivíduos seguindo a linha do confinamento e do controle, entretanto, não possuía o Estado capacidade suficiente para abarcar todos os menores que “necessitavam” de tal acompanhamento.
“Para sua implantação, a Política Nacional do Bem-Estar do Menor compreendeu três aspectos considerados relevantes: a) integração de programas nacionais de desenvolvimento econômico e social; b) dimensionamento das necessidades afetivas, de nutrição, sanitárias e educativas; c) racionalização dos métodos a serem utilizados […] Apesar de uma tentativa de equacionar o problema sociologicamente, prevalece na prática a ótica assistencialista da transformação da personalidade individual.”
Além de todos os defeitos já expostos temos forçosamente de reconhecer que o Código de Menores de 1979 apresentou algum avanço no modo como nosso país tratava os menores em situação irregular. A inserção no artigo 9º, §2º e no artigo 11 da obrigatoriedade de escolarização e profissionalização dos menores tanto nas instituições públicas como nas particulares representou um ganho significativo no sentido de a saída para os problemas destes indivíduos encontrava-se na instrução e na inserção no mercado de trabalho, na tentativa de erradicar a pobreza com que estes conviviam, causa dada com certa da irregularidade destes jovens, e a preocupação de integrá-los, ainda que timidamente, no meio social, quando determina que tal escolarização e profissionalização se darão “preferencialmente em estabelecimentos abertos”.
Não mais tratando das entidades de assistência ao menor, gostaria de referenciar outro avanço significativo do Código de Menores, que posteriormente serviria de conceito basilar para a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente: O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR.
“Art 13. Toda medida aplicável ao menor visará, fundamentalmente, à sua integração sócio-familiar.
(…)
Art 118. Em nenhum caso haverá incomunicabilidade de menor, o qual terá sempre direito à visita de seus pais ou responsável e de procurador com poderes especiais, de comum acordo com a direção do estabelecimento onde se encontrar internado, ou devidamente autorizado pela autoridade judiciária.
Parágrafo único. A autoridade judiciária poderá suspender, por tempo determinado, a visita dos pais ou responsável, sempre que a visita venha a prejudicar a aplicação de medida prevista nesta Lei.”
É visível o conflito dos paradigmas nesta passagem do código, um diploma que se caracteriza pelo aspecto assistencialista, de confinamento e “cura” do jovem, institui como objetivo fundamental das medidas aplicáveis aos menores a sua reintegração no seio familiar e social, demonstrando assim, uma clara influência das novas idéias que permeavam o direito da criança e do adolescente, o menor como sujeito de direitos e não mero objeto de medidas judiciais.
Entretanto, para não fugir da ótica que lhe é peculiar, o código no seu parágrafo único do artigo 118 estabelece uma exceção a esse direito de convivência familiar, deixando a critério do magistrado impedir este contato quando o mesmo for prejudicial às medidas aplicadas, ao tratamento, e não quando for prejudicial ao menor, mais uma vez retorna o jovem à mera condição de objeto.
4.2 No Estatuto da Criança e do Adolescente
Quando partimos para o Estatuto da Criança e do Adolescente a mudança de paradigma é, de tal modo, intensa que já no seu artigo 3º estabelece a criança e o adolescente possuidores de todos os direitos fundamentais à pessoa humana e no artigo 4º determina como sendo dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público garantir a tais indivíduos o direito à convivência familiar e comunitária, deixando de lado aquela visão institucionalizante de que o Estado era o único responsável pelo cuidado necessário a estes jovens.
No que tange às entidades de atendimento tal mudança de paradigma também é facilmente notável, o estatuto se aprofunda deveras mais que o Código de menores na disciplina destas instituições, estabelecendo diversas regras sobre o seu funcionamento, entretanto por ser demasiado longa tal disciplina, nos concentraremos apenas no artigo 92 onde constam os princípios norteadores do funcionamento destas entidades.
“Art. 92. As entidades que desenvolvam programas de abrigo deverão adotar os seguintes princípios:
I – preservação dos vínculos familiares;
II – integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem;
III – atendimento personalizado e em pequenos grupos;
IV – desenvolvimento de atividades em regime de co-educação;
V – não desmembramento de grupos de irmãos;
VI – evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e adolescentes abrigados;
VII – preparação gradativa para o desligamento;
IX – participação de pessoas da comunidade no processo educativo.”
Este artigo representa fielmente a nova visão que o estatuto traz sobre o tratamento que deve ser destinado às crianças e aos adolescentes, centrado agora não mais separação dos menores de seus genitores que seriam responsáveis pela “situação irregular” dos mesmos e sim na idéia de que quebrar o vínculo familiar destes indivíduos deve ser a ultima ratio no processo, prezando-se sempre pela manutenção da família original e mesmo quando isto não for possível que se coloque o menor em família substituta, capacitada para tanto, sem deixar o jovem abandonado em tais instituições. Além disso, o cuidado de manter as crianças e adolescentes sempre no mesmo grupo, criando deste modo um vínculo entre eles, evitando a separação inclusive de irmãos e a transferência entre entidades.
Outro aspecto a ser comentado é a preocupação que o estatuto dedica às condições físicas que as entidades de atendimento devem apresentar para que se habilitem a receber os jovens, evitando assim que estes lugares se transformem em verdadeiros depósitos de crianças e adolescentes, uma vez que, a passagem deles por estas instituições deve ser a mais breve possível, ao máximo assemelhada àquela que o jovem possuiria dentro de sua casa, afim de que não se crie traumas nem transtornos nesses indivíduos, que, inclusive, como prevê o artigo supracitado, devem ser preparados gradativamente para o seu desligamento.
Um dos grandes responsáveis por essa mudança de foco no tipo de estabelecimento onde deverão ser abrigados esses jovens foi a mudança dos destinatários da legislação de menores, anteriormente estas instituições serviam somente para receber, ou melhor, “estocar”, os chamados menores em situação irregular, a partir do estatuto, todas as crianças e adolescentes que necessitassem de abrigo poderiam ser levadas a estes locais, passava-se de uma prisão maquiada, utilizada para “limpar” a sociedade, para um local destinado a verdadeiramente cuidar das crianças e adolescentes, pelo menor tempo possível vale ressaltar, visto que, a convivência no seio familiar era o principal objetivo da nova legislação.
Dentro desse artigo reforça-se a expansão da responsabilidade pelo cuidado com esses jovens, já exarada pelo artigo 4º, quando estabelece como princípios orientadores das entidades de assistência a participação de pessoas da comunidade no processo educativo deste indivíduos e a participação destes na vida da comunidade local. Todos agora somos responsáveis pela saúde física e mental das crianças e dos adolescentes, que passaram a ser não mais um problema social, e sim um problema da sociedade como um todo.
Mesmo restringindo nosso âmbito de análise aos princípios do artigo 92 do estatuto gostaríamos de frisar a importância dos mandamentos presentes no artigo 94, nomeadamente estabelecidos para as entidades de internação, mas que também deverão ser obedecidos pelas que desenvolvam programas de abrigo, uma vez que tais regras baseiam-se na manutenção dos direitos fundamentais dos jovens sob sua responsabilidade e na existência de condições mínimas de desenvolvimento físico, mental e social destes jovens, devendo, portanto, ser observadas por todos que lidem com crianças e adolescentes qualquer que seja o modo.
4.2.1 A Implementação das Disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente quanto às Entidades de Assistência ao Menor
“A política pública de atendimento a crianças e adolescentes está consubstanciada no art. 227 do mencionado diploma legal [Constituição Federal], sendo o norteador dos preceitos contidos nos artigos 86 a 89 da Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente. (…)
Nesta esteira de entendimento, a assistência social oferece o serviço de abrigo como uma das medidas de proteção para crianças e adolescentes ameaçados em seus direitos básicos, desprotegidos e em estado de abandono.
Esta medida de proteção social especial de alta complexidade é delimitada pelos princípios de excepcionalidade, brevidade e provisoriedade e deve oferecer atendimento integral, cuidado e espaço para a socialização e desenvolvimento das crianças e adolescentes que necessitam deste acolhimento, até que seja possível sua reintegração familiar ou encaminhamento para família substituta.
Na atualidade, os abrigos não podem ter como modelo as antigas instituições nas quais a criança “era criada” sob a égide da disciplina que a separava das relações de convívio com a sociedade. As relações com a família, o convívio afetivo e o uso dos serviços sociais da comunidade são elementos essenciais a dar efetividade à doutrina da proteção integral. Ao contrário do isolamento, o abrigo deve ser um serviço de integração da criança na família e na sociedade.”
O texto acima transcrito foi retirado de um projeto pioneiro capitaneado pelo Ministério Público do Estado da Bahia, o Governo do Estado, a Prefeitura Municipal de Salvador, e a Rede de Abrigos desta cidade, objetivando efetivar os princípios norteadores das entidades de abrigamento constantes do Estatuto da Criança e do Adolescente e já referidos neste trabalho, visto que, apesar da beleza normativa que representa o estatuto, a realidade social nem de longe reflete aquilo que foi visado quando de sua produção.
A regra geral (estatuto) precisa de uma regulamentação, não somente para definir aquilo que o governo deveria exigir das instituições de assistência, mas também para propiciar a estas mesmas entidades saber como devem desenvolver suas atividades, sem deixar margem ao livre arbítrio interpretativo de quem quer que seja responsável por analisar estas regras.
Deste projeto nasceu a Resolução n. 004/2006 emanada do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Município de Salvador, onde se consolidam as idéias presentes no estatuto como demonstraremos a seguir.
A regra geral da resolução, arriscamos afirmar, está contida no seu artigo 2º:
“Art. 2º – A entidade de abrigo tem como premissa maior o bem estar dos abrigados, através da reaproximação e fortalecimento dos vínculos familiares. A manutenção da medida de abrigamento só deve ocorrer nas situações em que se verifique a inviabilidade, temporária ou definitiva, do retorno ao lar ou a inserção em família substituta.”
Transpor para este trabalho todas as diretrizes deste diploma seria desviar o objetivo principal deste trabalho que é analisar as normas do estatuto, portanto, faremos apenas referência a algumas delas demonstrando sua derivação e especificação dos princípios constantes do estatuto.
Segundo a resolução tais entidades devem manter um máximo de seis jovens por quarto, e uma proporção máxima de dez por responsável; deve dispor, além de quartos, de sala de visita, sala de estudo, cozinha, área de serviço e área de lazer e convivência; ter banheiros separados por sexo e na para no máximo sete crianças e/ou adolescentes; cama e armário individualizados assim como vestuário e objetos pessoais.
Além da capacidade física dispõe também sobre o corpo técnico destas instituições, exigindo uma equipe interdisciplinar composta por assistente social, orientador educacional, psicólogo e mães sociais; constantemente treinada, objetivando, dentre outras coisas, um compromisso permanente com o resgate da auto-estima dos abrigados.
A partir do estabelecimento destas regras as entidades têm instrumentos normativos determinando como elas devem proceder para cumprir as disposições do artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, quais sejam: “a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. Disto resulta também um maior poder de fiscalização por parte do poder público, pois este já pode impor a obediência a estas regras específicas, e não mais a princípios abstratos que admitiam as mais diversas interpretações.
Como podemos perceber, a contribuição desta iniciativa é deveras importante e esperamos que seja conduzida com seriedade, para assim, consolidarmos o verdadeiro cuidado que merecem as nossas crianças e adolescentes.
5. Conclusão
A evolução do tratamento dado à criança e ao adolescente no nosso país começou a partir dos Códigos de Menores de 1927 e 1979 com uma idéia de sistema tutelar, de tratamento dos chamados menores infratores e menores em situação irregular, que eram meros objetos de medidas judiciais, sem direito a contraditório ou ampla defesa, sob o manto de que as autoridades judiciárias estariam agindo sempre em busca do benefício do menor, porém demonstramos a verdade presente por detrás desse sistema, a intenção de limpar a sociedades destes indivíduos considerados como um problema social.
O clamor de toda uma sociedade por um tratamento mais justo e humano para nossos jovens respeitando a sua condição de pessoas em desenvolvimento culminou no surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, sob a égide da doutrina da proteção integral, atendendo a todos os menores e não mais somente àqueles que se encontravam em situação irregular. A criança e o adolescente eram sujeitos de direito, e deveriam ser tratados como tal.
Mesmo com todos os avanços presentes na nova codificação, esta deixava a desejar em termos de efetividade, e a esperança renasce a partir de uma iniciativa de alcance apenas municipal, mas que esperamos, contagie todo o sistema de proteção às crianças e adolescentes do nosso país.
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