A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE HANS-GEORG GADAMER E SUA INFLUÊNCIA NO MÉTODO CONCRETIZADOR DE KONRAD HESSE

Abelardo Sampaio


Sumário: 1. A filosofia de Hans-Georg Gadamer; 1.1 Resumo Histórico; 1.2 A Contribuição Filosófica de Gadamer; 1.2.1 Panorama Hermenêutico; 1.2.2 O Pensamento de Hans-Georg Gadamer; 2. O Método Concretizador de Konrad Hesse; 2.1 Linhas Gerais sobre o Método Hermenêutico-Concretizador; 2.2 A Presença da Filosofia de Gadamer na Teoria de Hesse; Conclusão.

Resumo
O presente artigo tem por objetivo realizar uma análise sucinta acerca do pensamento filosófico de Hans-Georg Gadamer, expondo os principais temas acerca da sua proposta hermenêutica, a fim de analisar a influência que estas idéias exerceram por sobre o método hermenêutico-concretizador proposto por Konrad Hesse para a interpretação das normas constitucionais, para o que será também necessário trazer um panorama da teoria defendida por Hesse.

Palavras-Chave: Gadamer; Hesse, Concretização, Pré-Compreensão

Abstract
This article aims to make a brief analysis about the philosophical thought of Hans-Georg Gadamer, outlining the main issues on its proposal for hermeneutics in order to analyze the influence these ideas have had over the hermeneutical-concretizing method proposed by Konrad Hesse for the interpretation of constitutional norms, to which will also be necessary to bring an overview of the theory advocated by Hesse.

Keywords: Gadamer; Hesse, Concretion, Pre-Understanding

Introdução

O tema tratado neste artigo será a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer e sua influência por sobre o método hermenêutico concretizador proposto por Konrad Hesse para a interpretação das normas constitucionais.

Não se ousa questionar a relevância que possui o pensamento de Gadamer para a teoria científica, visto ter este, juntamente com Martin Heidegger, revolucionado a noção de interpretação e compreensão do mundo moderno, à ponto de ser a eles atribuídos a criação da Nova Hermenêutica.

Nesta linha de pensamento, não se pode dispensar um estudo, ainda que perfunctório, acerca das premissas que norteiam a hermenêutica filosófica de Gadamer e a demonstração de como suas idéias se perpetuaram no seio da comunidade científica, em especial jurídica, com a identificação da influência que exerceram sobre os trabalhos científicos posteriores.

Neste trabalho, serão analisadas especificamente as influências por sobre o método concretizador de Konrad Hesse, expondo os pontos onde é possível verificar como a teoria dos preconceitos e a unidade entre os momentos da interpretação e da aplicação trazidos por Gadamer serviram como base para o desenvolvimento do método de Konrad Hesse.

1. A Filosofia de Hans-Georg Gadamer

Para iniciar o desenvolvimento deste artigo se faz necessário uma exposição, ainda que sucinta, acerca da contribuição filosófica trazida para o mundo hermenêutico pelo trabalho de Hans-Georg Gadamer.

Para situar o leitor diante das condições sob as quais se desenvolveu o pensamento Gadameriano, mister se faz uma digressão acerca de sua história e vivências, que por demais influenciariam em suas opiniões

1.1. Resumo Histórico

Hans-Georg Gadamer nasceu em 11 de fevereiro de 1900 na cidade de Marburg, ao sul da Alemanha porém passou sua infância na cidade de Breslau, hoje Wroclaw na Polônia, local onde seu pai era professor de Farmácia na Universidade local.

Desde jovem, Gadamer já demonstrava seu interesse pelo estudo das chamadas “humanidades” tendo ingressado na Universidade de Breslau em 1918 e já se transferido com sua família em 1919 para Marburg.

Em 1922 já concluía seu doutoramento sob a orientação dos professores Paul Natrop e Nicolai Hartman, porém, quem contribuiu de forma mais significativa para o crescimento filosófico de Gadamer foi Martin Heidegger.

Entre 1923 e 1928, Gadamer trabalhou com assistente de Heidegger, que ficara desapontado com a rápida habilitação de seu assistente como pesquisador. Em 1928, Gadamer defendia sua dissertação de habilitação com o tema “A Ética Dialética de Platão”, produzida sob a orientação do próprio Heidegger e de Paul Friedlander.

Neste mesmo ano, Gadamer assumia um cargo de Junior na Universidade de Marburg, iniciando assim a sua vida acadêmica, chegando a professor de nível inferior em 1937. Durante este tempo, Gadamer ainda ensinou temporariamente na Universidade de Kiel.

Em 1939, Gadamer assumiu a Direção do Instituto de Filosofia da Universidade de Leipzig, tendo se tornado Diretor da Faculdade em 1945 e Reitor em 1946. Retornou para ensinar em Frankfurt-am-Main em 1947 e em 1949 sucedeu Karl Jaspers na Universidade de Heidelberg.

Gadamer se aposentou oficialmente no ano de 1968, quando se tornou professor emérito de Heidelberg, passando a viajar para diversas localidades, dedicando especial atenção à América do Norte, especialmente à Boston College em Massachusetts.

Em termos de produção literária, pode-se citar o Philosophische Rundschau (Revisão Filosófica ) que fundou juntamente com Helmut Kuhn, e adquiriu grande influência, porém, a sua obra prima se encontra na publicação de Verdade e Método de 1960.

Durante sua vida acadêmico-filosófica, Gadamer travou diversas discussões filosóficas, tendo se destacado as que desenvolveu com Emilio Betti, com Jürgen Habermas e com Jacques Derrida.’

Gadamer viveu até os 102 anos de idade, tendo falecido no ano de 2002 na cidade Heidelberg no dia 13 de março.

1.2. A Contribuição Filosófica de Gadamer

Antes de discorrer efetivamente acerca da filosofia gadameriana é necessário fazer uma colocação espaço-temporal de suas idéias e do estado da hermenêutica para o qual seus questionamentos se dirigiram.

1.2.1. Panorama Hermenêutico

A Metodologia da Ciência Moderna se caracterizou pela busca incessante da verdade absoluta pautada na razão, muito em função de um objetivo claro, que era superar os dogmas e mistificações trazidos pelas concepções teológicas dominantes à época.

Na esteira do pensamento de Descartes, para que fosse possível alcançar um rigor digno de ser nomeado como científico, um pesquisador deveria se ater unicamente ao método científico, que, apoiado na razão, exigia o questionamento e desvinculação de todo e qualquer conhecimento que não houvesse sido provado por esta mesma metodologia racional.

Esta era a metodologia típica das ciências naturais, e por um extenso período se objetivou aplicar esta mesma metodologia às chamadas ciências do espírito, sem o que, estas jamais poderiam ser chamadas de “científicas”.

Porém, este método se mostrou inadequado para enfrentar as especificidades que possuíam as ciências humanas e tornou-se patente a necessidade de encontrar uma metodologia que fosse compatível com o caráter histórico-presencial do conhecimento objeto das ciências das humanidades.

Gadamer expõe esta situação da seguinte forma:

Mas o que representa o verdadeiro problema que as ciências filosóficas colocam ao pensamento é que não se consegue compreender corretamente a natureza das ciências do espírito, caso a meçamos com o padrão de conhecimento progressivo da legalidade (GesetzmàBigkeit). A experiência do mundo social-histórico não se eleva a uma ciência com o processo indutivo das ciências da natureza.

O filósofo responsável por iniciar a conscientização de que o objeto das ciências humanas era histórico e como tal deveria ser analisado foi Wilhelm Dilthey, que traz para a hermenêutica a experiência concreta e histórica como ponto de partida para se chegar ao conhecimento.

Dilthey traz para a hermenêutica das humanidades a substituição da interpretação pela compreensão, que não seria um mero ato de pensamento, mas sim uma forma de captação da experiência vivida, pois somente deste modo é que se manifestavam os fenômenos humanos que são o seu objeto.

Mesmo avançando na busca por uma hermenêutica específica para as ciências do espírito, o historicismo de Dilthey ainda estava erigido sob os parâmetros da ciência moderna da busca pela verdade e da interpretação correta, e equivocava-se, principalmente, ao determinar que o interprete deveria se deslocar para o âmbito do autor e somente assim poderia alcançar a verdadeira compreensão.

Contribuição significativa trouxe Martin Heidegger, ao finalmente tratar da hermenêutica como hermenêutica filosófica e proporcionar uma viragem ontológica da mesma. Heidegger afirma que a compreensão faz parte do próprio ser, é o ser no mundo, o ser-aí ou Dasein.

Esclarecedora a exposição de Lênio Streck sobre a filosofia de Heidegger:

O Dasein está no mundo, antes de mais e fundamentalmente, como compreensão, além de também como afetividade. O Dasein, nas palavras do próprio Heidegger, na sua intimidade com a significatividade, é a condição ôntica da possibilidade de descobrir o ente que se encontra no mundo no modo de ser da prestabilidade. Daí que para o estar-aí, ser-no-mundo equivale a ter originariamente intimidade com uma totalidade de significados. O mundo não lhe é dado primariamente como um conjunto de “objetos” com os quais, num segundo momento, se relacionaria, ao atribuir-lhe os seus significados e funções. As coisas já vêm dotadas de uma função, isto é, de um significado e podem manifestar-se-lhe como coisas, unicamente enquanto se inserem numa totalidade de significados de que o Dasein já dispõe.

Heidegger já traz a idéia da pré-compreensão, de que a compreensão é formada em verdade pelo contato entre o ser e o mundo para formar o Dasein, somente este, ser-no-mundo, seria capaz de conhecer. É o que Heidegger chamou de pré-sença, e que foi desenvolvido posteriormente por Gadamer.

1.2.2. O Pensamento de Hans-Georg Gadamer

É preciso primeiro trazer à baila um esclarecimento feito pelo próprio Gadamer acerca dos seus objetivos quando da construção de sua hermenêutica filosófica. Ele não objetiva jamais criar uma conjunto de regras que sejam disponibilizadas ao intérprete para que este, seguindo os passos ali estabelecidos, possa chegar ao conhecimento verdadeiro.

Este não é para Gadamer o papel da hermenêutica. À esta disciplina caberia em verdade possibilitar ao indivíduo saber aquilo que ele pode conhecer. Nas suas palavras :

Desta posição intermediária, onde a hermenêutica tem que ocupar seu posto, resulta que sua tarefa não é desenvolver um procedimento da compreensão, mas esclarecer as condições sob as quais surge compreensão. Mas essas condições não têm todas o modo de ser de um “procedimento” ou de um método de tal modo que quem compreende poderia aplicá-las por si mesmo – essas condições têm de estar dadas.

Expor ao ente quais as condições sob as quais surge a compreensão, este era o objetivo da hermenêutica filosófica de Gadamer, que foi erroneamente criticado de não ter trazido qualquer contribuição para o processo hermenêutico em si, principalmente por Emilio Betti, ao que respondia ter alcançado o objetivo a que se propunha, não tendo jamais objetivado criar um esquema interpretativo.

A partir da idéia de Heidegger da pré-compreensão, pré-sença, Gadamer tenta trazer a fundo a questão da historicidade destes dados prévios de que dispõe o interprete para realizar a compreensão, e que ele irá denominar de pré-conceitos.

A compreensão de um texto, desta forma, se daria a partir da manifestação das expectativas e sentidos prévios já possuídos pelo interprete, que, iria sendo constantemente revisado conforme se avançaria na compreensão do sentido presente no texto. Este movimento existente entre os conceitos prévios do interprete e aqueles que ele se depara em contato com o texto seria exatamente o círculo hermenêutico.

Porém, essas experiência prévias não podem se sobrepor à expressão que vem da própria coisa, muito pelo contrário, para Gadamer, o necessário é que se realize a compreensão a partir de uma abertura à opinião emanada pelo objeto, e que se mantenha em uma relação com sua opiniões (pré-conceitos) próprias em um círculo hermenêutico.

Não se trata em hipótese alguma de um posicionamento de sujeição do interprete para com o texto, ou mesmo de neutralidade, como objetivava a hermenêutica iluminista, o que é necessário é que o intérprete tenha consciência de suas próprias pré-compreensões para confrontá-las com as do texto.

Por isto, para Gadamer, toda compreensão é um procedimento eminentemente preconceituoso, porém na real acepção da palavra, afastada da significação errônea que lhe trouxe o Iluminismo, no sentido de falso juízo, visto que, todo preconceito poderá ser valorado tanto positiva como negativamente, tendo a concepção errônea partido da idéia moderna de que aquilo que não possui uma fundamentação comprovada pela razão não pode ser tido como correto, na linha do pensamento cartesiano.

Mas mesmo a razão para Gadamer não pode prescindir das pré-compreensões e dos pré-conceitos, pois para o filósofo, esta, como produto do intelecto humano somente existe também enquanto fenômeno histórico, in verbis :

Não é certo, antes, que toda existência humana, mesmo a mais livre, está limitada e condicionada de muitas maneiras? E se isso é assim, então a idéia de uma razão absoluta não é uma possibilidade da humanidade histórica. Para nós a razão somente existe como real e histórica, isto significa simplesmente: a razão não é dona de si mesma, pois está sempre referida ao dado no qual se exerce.

Da idéia de compreensão como um procedimento preconceituoso, Gadamer traz o conceito de tradição, que para ele é um momento da própria história e da liberdade, visto que a tradição não significaria a simples permanência, pois a mesma necessita ser afirmada, assumida e cultivada. Nestes termos, tradição seria em verdade conservação, e estaria também sujeitas a mudanças históricas, sendo, também, ao mesmo tempo, razão posto que afirmada, assumida e cultivada.

A tradição então representaria o arcabouço de preconceitos que permaneceram com o interprete no momento da interpretação de um texto, e o papel da hermenêutica seria exatamente apresentar as condições que possibilitem esta correlação entre a experiência do texto com a experiência da tradição, constituindo-se, este procedimento, devido ao seu próprio caráter histórico, com agora já parte integrante da própria tradição.

É a partir desta correlação que Gadamer vai apresentar o conceito de horizonte. Horizonte para Gadamer é aquilo que permite melhor compreender e enxergar tanto o que está perto como o que está longe, e aquilo que está para além do horizonte é o que não é passível de conhecimento. Neste sentido afirma :

O conceito de horizonte se torna aqui interessante, porque expressa essa visão superior mais ampla, que aquele que compreende deve ter. Ganhar um horizonte quer dizer sempre aprender a ver mais além do próximo e do muito próximo, não para apartá-lo da vista, senão que precisamente para vê-lo melhor, integrando-o em um todo maior e em padrões mais corretos.

Gadamer afirma que os preconceitos que o interprete traz consigo e a tradição determinam uma situação hermenêutica e, consequentemente, um horizonte do presente, porém deve-se ter em mente que este conceito de horizonte não é um conceito fixo, ao contrário, é um conceito em constante mudança e formação.

Isto se daria em razão de que sempre tem-se de realizar o enfretamento dos preconceitos do interprete para com os horizontes que se lhe apresentam, e isto seria então, nos dizeres do filósofo, a tarefa da compreensão, a fusão de horizontes. Isto se daria, em face da tradição, onde o velho e o novo se encontrariam para alcançar uma validez sem que um se sobrepusesse explicitamente ao outro.

O papel da hermenêutica filosófica então seria explicitar ao intérprete a forma como esta fusão de horizontes ocorre para que ele possa, conscientemente, realizar a compreensão tendo ciência dos preconceitos que lhe acompanham e evitar as precipitações.

Nas palavras de Gadamer :

Todo o encontro com a tradição realizado com consciência histórica experimenta por si mesmo a relação de tensão entre texto e presente. A tarefa hermenêutica consiste em não ocultar esta tensão em uma assimilação ingênua, mas em desenvolvê-la conscientemente. Esta é a razão por que o comportamento hermenêutico está obrigado a projetar um horizonte que se distinga do presente. A consciência histórica é consciente de sua própria alteridade e por isso destaca o horizonte da tradição com respeito ao seu próprio.

É neste conceito de fusão de horizonte em que se dá para Gadamer o evento da compreensão, onde o intérprete, a partir do seu horizonte presente (preconceitos e tradição), ver-se-á frente a um horizonte histórico e baseado em uma consciência histórica efeitual, terminará por fundir estes horizontes em um só, gerando um novo horizonte presente e extinguindo aquele horizonte histórico, que terá consistido tão somente em uma fase da compreensão.

Além desta contribuição acerca do papel da historicidade na pré-compreensão como parte integrante do processo hermenêutico, Gadamer traz uma imprescindível contribuição quanto aos momentos integrantes da compreensão em sentido lato, antes somente interpretar, posteriormente interpretar e compreender, e este filósofo traz a indispensável contribuição de que a aplicação também faz parte do processo de compreensão, sobre o que será discorrido ao tratar a frente das interação entre a filosofia gadameriana e o método concretizador de Konrad Hesse.

2. O Método Concretizador de Konrad Hesse

Neste ponto discorrer-se-á sobre o método hermenêutico-concretizador proposto por Konrad Hesse e as aproximações entre a teoria proposta por Hesse e a hermenêutica filosófica de Gadamer.

2.1. Linhas Gerais sobre o Método Hemenêutico-Concretizador

Em função do caráter eminentemente político que possui a Carta Constitucional, e em resposta a teoria do controle dos fatores de poder por sobre a Constituição defendida por Lassalle, Hesse parte em busca da afirmação da força normativa da Constituição.

Uma máxima serve de orientação para o sistema proposto por Hesse: “Não há interpretação de Constituição independente de problemas concretos”.

Para Konrad Hesse, interpretar as normas trazidas pela Constituição significa concretizá-los, fazer com que sua aplicação ao caso concreto seja feita de maneira a efetivar aquilo que está posto, afirmava que:

Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tabula rasa. (…) A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação.

Tendo em vista as especificidades das normas de direitos fundamentais, as quais dominam os textos das Constituições modernas, e que não se compatibilizam com os métodos hermenêuticos clássicos aplicados à categoria das normas em geral, chegou-se à máxima: “os direitos fundamentais, em rigor, não se interpretam; concretizam-se”, desprezando, deste modo, os métodos clássicos em razão de que aqueles foram criados para a interpretação das normas privadas e não serviam para as normas de direitos fundamentais ante o seu caráter complexo e o seu alcance normativo pluridimensional.

Apresentava-se, então, a hermenêutica concretizadora como uma alternativa aos métodos clássicos.

Não se pode negar a influência da Tópica de Vieweg na teoria de Hesse, uma vez que, no método da concretização também se concentra o trabalho do intérprete no problema, ela somente é possível em face de um problema concreto, pois, só existe espaço para interpretação onde existe dúvida, e somente existe dúvida se houver um problema.

Esta teoria une o momento da determinação do sentido da norma e da sua aplicação em um só desígnio. O teor da norma só é obtido a partir do ato aplicador-interpretativo.

Para Hesse, são três os elementos principais da interpretação concretizadora: a norma que se deseja concretizar, o problema concreto a resolver e a compreensão prévia do intérprete. Apesar de reconhecer a interferência pessoal do intérprete no processo interpretativo, Hesse não lhe atribui importância tamanha a ponto de reconhecer-lhe um poder criador. Para o autor, por exemplo, não é o jurista responsável por determinar qual a dúvida a ser resolvida, é, antes, o problema que traz consigo a própria dúvida. O intérprete influencia no resultado da concretização, mas não o direciona.

Além da influência do próprio intérprete, para que se tenha uma efetiva concretização é preciso levar em conta também o resultado das forças sociais que atuam por sobre o problema a ser elucidado. Neste sentido, singulares as palavras de Sidney Guerra e Lílian Márcia Balmant Emerique :

Assim, a concretização do conteúdo de uma norma constitucional, bem como sua realização, só é possível incorporando as circunstâncias da realidade que essa norma procura regular. As singularidades destas circunstâncias compõem o âmbito normativo, o qual, a partir do conjunto dos dados sociais afetados por um preceito, e através do comando contido sobre todo o texto da norma, o programa normativo é elevado à condição de parte integrante do conteúdo normativo.

O maior mérito de Hesse ao elaborar a teoria do método hermenêutico-concretizador foi fazer uma releitura da tópica de Vieweg procurando soluções para a falta de normatividade inerente a esta tese, e para o seu caráter de acessório e não de método interpretativo autônomo.

A busca destas soluções quedou por determinar dois pontos de apoio indispensáveis à teoria de Hesse: a função orientadora dos princípios da interpretação constitucional e o estabelecimento do texto da norma constitucional como limite à interpretação concretizadora.

A importância dos princípios da interpretação constitucional, reside na manutenção da ordem constitucional e principalmente na prevenção à existência de contradições entre as normas constitucionais e entre estas e os fundamentos da Constituição. A existência destes princípios parte do pressuposto de que a própria Constituição traz elementos orientadores da sua interpretação, e Hesse reafirma a força destes elementos dos quais não poderá o intérprete se dissociar quando da concretização da norma.

O reconhecimento da limitação do intérprete ao texto da norma é também de suma importância, pois vincula a interpretação a algo pré-estabelecido de forma vinculante pela Constituição, onde se encerram as possibilidades de compreensão lógica do texto da norma, trazendo para o interior desta doutrina uma função racionalizadora, limitadora e estabilizadora do poder conferido ao jurista.

Mais uma vez, esclarecedoras são as palavras de Sidney Guerra e Lílian Márcia Balmant Emerique , ao tratar da limitação do intérprete às possibilidades conferidas pelo texto da norma:

Nas situações onde o intérprete se impõe a Constituição deixa de interpretá-la para mudá-la ou quebrantá-la. Quaisquer das condutas lhe estão vedadas pelo direito vigente. Inclusive quando o problema não pode resolver-se adequadamente por meio da concretização, o juiz, que se encontra submetido à Constituição, não pode eleger livremente os topois. Para uma interpretação constitucional que parte da primazia do texto este constitui o limite de sua atuação.

O avanço do intérprete para além do texto da norma consistiria em verdade numa violação à Constituição, jamais uma concretização das suas normas, revelando a principal diferença entre a tópica proposta por Hesse daquela doutrinada por Vieweg, conferindo ao método da concretização uma utilidade prática maior, permitindo-lhe ser considerado como um método hermenêutico autônomo.

É com base nestes ensinamentos que se deve proceder à interpretação à luz do método hermenêutico-concretizador, buscando não somente aferir o sentido do texto normativo, mas antes aperfeiçoá-lo em busca de uma maior efetividade à luz do problema concreto posto ao intérprete.

Deve-se ter em mente todos os influxos das forças sociais incidentes sobre o intérprete e também a sua própria compreensão, evitando, desta forma um afastamento da realidade prática, o que, inviabilizaria a busca pela efetividade máxima das normas constitucionais.

2.2. A Presença da Filosofia de Gadamer na Teoria de Hesse

Não é difícil verificar a influência que as idéias de Hans-Georg Gadamer tiveram por sobre o desenvolvimento do método hermenêutico-concretizador trazido por Konrad Hesse.

Primeiramente, Hesse deixa claro que na interpretação que ele se propõe a demonstrar, torna-se indispensável a valoração acerca das pré-compreensões trazidas pelo interprete na hora de concretizar a norma, em clara consonância, ou melhor, dependência dos ensinamentos trazidos por Gadamer na esteira do pensamento de Heidegger.

Hesse traz como elemento essencial da interpretação as compreensões prévias do intérprete, admitindo a interferência subjetiva deste com relação ao resultado do ato interpretativo em função dos preconceitos que possuiria ao tempo da interpretação.

Mesmo reconhecendo de forma inconteste o papel dos preconceitos do intérprete na formação do sentido, Hesse ainda se ressalva a admitir o poder criador do mesmo ao estabelecer claros limites à sua atuação diretamente relacionados com o limite do texto em si e as conseqüências da interpretação.

A partir desta idéia de influência do resultado da interpretação no próprio processo interpretativo da norma é que se pode verificar a maior influência do pensamento Gadameriano sobre a obra de Hesse.

Como já afirmado supra, a teoria de Hesse une o momento da determinação do sentido da norma e da sua aplicação em um só desígnio. O teor da norma só é obtido a partir do ato aplicador-interpretativo. É este o ponto de maior interseção entre o pensamento de Gadamer e a teoria de Hesse.

Gadamer inovou, além de atribuir o valor da historicidade na idéia de pré-compreensão trazida por Heidegger, ao retornar à discussão por sobre os momentos que faziam parte do ato de compreensão em sentido amplo.

Este filósofo afirma que a retomada do problema hermenêutico fundamental não pode prescindir de revisitar os momentos quer perfazem o ato de compreensão em sentido lato, que a nova hermenêutica traz sobre esse tema a noção de que não se pode separar a interpretação da compreensão em sentido estrito.

Porém, ressalta, que não se pode deixar sem atenção o momento da aplicação, que seria então o terceiro momento da problemática da hermenêutica.

Neste ponto, interessante se mostra transcrever parte da obra onde Gadamer afirma que :

Nisso, nossas considerações nos forçam a admitir que, na compreensão, sempre ocorre algo como uma aplicação do texto a ser compreendido, à situação atual do intérprete. Nesse sentido nos vemos obrigados a dar um passo mais além da hermenêutica romântica, considerando como um processo unitário não somente a compreensão e interpretação, mas também a aplicação. Não significa isso voltar à distinção tradicional das três subtilitatae de que falava o pietismo, pois pensamos, pelo contrário, que a aplicação é um momento do processo hermenêutico, tão essencial e integrante como a compreensão e a interpretação

Se torna ainda mais evidente a similaridade entre as idéias destes dois Autores quando se passa à análise feita por Gadamer acerca da hermenêutica jurídica e a necessidade que essa possuía de integrar o momento da interpretação e da compreensão com o da aplicação, in verbis :

Tanto para a hermenêutica jurídica como para a teológica, é constitutiva a tensão que existe entre o texto proposto – da lei ou da revelação – por um lado, e o sentido que alcança sua aplicação ao instante concreto da interpretação, no juízo ou na predica, por outro. Uma lei não quer ser entendida historicamente. A interpretação deve concretizá-la em sua validez jurídica. Da mesma maneira, o texto de uma mensagem religiosa não deseja ser compreendido como um mero documento histórico, mas ele deve ser entendido de forma a poder exercer seu efeito redentor. Em ambos os casos isso implica que o texto, lei ou mensagem de salvação, se se quiser compreendê-lo adequadamente, isto é, de acordo com as pretensões que o mesmo apresenta, tem de ser compreendido em cada instante, isto é, em cada situação concreta de uma maneira nova e distinta. Aqui, compreender é sempre também aplicar.

É possível perceber inclusive que o próprio Gadamer já utilizava-se da expressão concretização para designar a forma como deveria ser interpretada uma norma jurídica à luz da questão hermenêutica.

A partir disto, verifica-se que os fundamentos para o método hermenêutico-concretizador proposto por Konrad Hesse encontra guarida desde o pensamento Gadameriano, por sobre o qual evoluiu-se na inter-relação entre o momento da interpretação da norma e o de sua aplicação, chegando à qualificá-los como incindíveis.

Hesse ainda vai além, ao trazer também para o âmbito da interpretação e aplicação da norma jurídica uma preocupação com os efeitos decorrentes de sua aplicação, assumindo uma posição consequencialista capitaneada por MacCormick , onde deverá o interprete-aplicador levar em consideração as conseqüências jurídicas que trará para todo o sistema a interpretação que ele deseja atribuir para aquela norma.

Conclusão

1. A Metodologia da Ciência Moderna se caracterizou pela busca incessante da verdade absoluta pautada na razão
2. Para um rigor digno de ser nomeado como científico, exigia o questionamento e desvinculação de todo e qualquer conhecimento que não houvesse sido provado pela metodologia racional.
3. Este método se mostrou inadequado para as ciências humanas, pois incompatível com o caráter histórico-presencial do seu objeto de conhecimento.
4. Expor a ente quais as condições sob as quais surge a compreensão, este era o objetivo da hermenêutica filosófica de Gadamer, não tendo jamais objetivado criar um esquema de interpretação.
5. A partir da idéia de Heidegger da pré-compreensão, pré-sença, Gadamer tenta trazer a fundo a questão da historicidade destes dados prévios de que dispõe o interprete para realizar a compreensão, e que ele irá denominar de pré-conceitos.
6. A compreensão de um texto, desta forma, se daria a partir da manifestação das expectativas e sentidos prévios já possuídos pelo interprete, que, iria sendo constantemente revisado conforme se avançaria na compreensão do sentido presente no texto.
7. Para Gadamer, toda compreensão é um procedimento eminentemente preconceituoso
8. A tradição então representaria o arcabouço de preconceitos que permaneceram com o interprete no momento da interpretação de um texto, e o papel da hermenêutica seria exatamente apresentar as condições que possibilitem esta correlação entre a experiência do texto com a experiência da tradição.
9. Os preconceitos que o interprete traz consigo e a tradição determinam uma situação hermenêutica e, consequentemente, um horizonte do presente, porém deve-se ter em mente que este conceito de horizonte não é um conceito fixo, ao contrário, é um conceito em constante mudança e formação.
10. Tem-se de realizar o enfretamento dos preconceitos do interprete para com os horizontes que se lhe apresentam, e isto seria então, nos dizeres do filósofo, a tarefa da compreensão, a fusão de horizontes.
11. O intérprete, a partir do seu horizonte presente (preconceitos e tradição), ver-se-á frente a um horizonte histórico e baseado em uma consciência histórica efeitual, terminará por fundir estes horizontes em um só, gerando um novo horizonte presente e extinguindo aquele horizonte histórico, que terá consistido tão somente em uma fase da compreensão.
12. Apresentava-se a hermenêutica concretizadora como uma alternativa aos métodos clássicos.
13. Esta teoria une o momento da determinação do sentido da norma e da sua aplicação em um só desígnio. O teor da norma só é obtido a partir do ato aplicador-interpretativo.
14. Para Hesse, são três os elementos principais da interpretação concretizadora: a norma que se deseja concretizar, o problema concreto a resolver e a compreensão prévia do intérprete.
15. Hesse traz como elemento essencial da interpretação as compreensões prévias do intérprete, admitindo a interferência subjetiva deste com relação ao resultado do ato interpretativo em função dos preconceitos que possuiria ao tempo da interpretação, na linha da filosofia de Gadamer.
16. A teoria de Hesse une o momento da determinação do sentido da norma e da sua aplicação em um só desígnio. O teor da norma só é obtido a partir do ato aplicador-interpretativo. É este o ponto de maior interseção entre o pensamento de Gadamer e a teoria de Hesse.
17. Isto fica evidente na análise feita por Gadamer acerca da hermenêutica jurídica e a necessidade que essa possuía de integrar o momento da interpretação e da compreensão com o da aplicação.
18. O próprio Gadamer já utilizava-se da expressão concretização para designar a forma como deveria ser interpretada uma norma jurídica à luz da questão hermenêutica.

Referências

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GUERRA, Sidney; EMERIQUE, Lílian Márcia Balmant. Hermenêutica dos Direitos Fundamentais. Revista da Faculdade de Direito de Campos. Ano VI, n. 7, dez. 2005.
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MORA, J. Ferrater. Dicionário de Filosofia. Tomo II. 2 ed. São Paulo: Edições Loiola, 2005.
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SOARES, Ricardo Maurício Freire. Curso de Introdução ao Estudo do Direito. Salvador: Juspodivm, 2009.
Stanford Encyclopedia of Philosophy, disponível em acesso em 30 nov. 2009
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica em Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

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O escritório atua tanto no direito público quanto no privado, com foco principal em atendimento à demandas empresariais. Com isso, se destacam alguns ramos do direito, notadamente o Direito Empresarial, Trabalhista, Tributário, Civil e Imobiliário.

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